Hoje vou partilhar convosco um conto que escrevi para o projecto Quem conta um conto. Espero que gostem. Em breve, voltarei a escrever mais um.
Anamar
"Anamar
olhava a porta branca da sua casa, da mesma forma que olhava as muitas portas
brancas da sua vida. Trinta anos. Um lar minimalista. Muitos sonhos na cabeça.
Anamar gostava de saias de roda e de blusas com pássaros bordados. Gostava de pintar
os lábios de vermelho e fazer de conta que era Amélie Poulain. Anamar tinha
desejos infinitos guardados num baú trancado. Tinha deitado fora a chave num
momento insano, o mesmo em jurara nunca mais abrir as portas (as tais muitas
portas) ao amor.
Nos
dias que passavam apressados, Anamar dividia-se e conjugava-se no verbo ser.
Ser melhor pessoa num mundo estranho. Ser melhor amiga dos amigos que não o
eram. Ser melhor filha de uma família fechada. Ser melhor profissional numa
profissão que não tinha. Anamar gostava de pintar telas ao fim-de-semana,
enquanto bebia chás de tília e de flor de laranjeira. Diziam os entendidos que
fazia bem. Anamar acreditava. Pela casa pequena e branca, jaziam vários
cadernos de capa dura e colorida. Cadernos repletos de poemas e de linhas
vazias, testemunhos de noites de insónia ou de dias de chuva e frio. Anamar não
gostava do frio. Sentia gelar os ossos e as palavras saíam trocadas e aos
tropeções. Anamar não gostava de usar saltos altos, tinha medo de cair. Da
mesma forma que não ousava voar muito além do parapeito da janela. Afinal, o
chão era feito de cantaria e podia magoar.
Anamar
tinha medo de amar. Depois de meia vida feita de desamores, Anamar
resguardara-se por detrás das muralhas que construíra em redor do seu coração,
um coração marcado, com cicatrizes feias, algumas ainda de fresco. De quando em
vez, Anamar atrevia-se a sair dessas muralhas e a ver além. Cobria-se de
purpurinas e renovava os trajectos. Sentava-se nos bancos de jardim, com os
seus óculos de sol e a malinha amarela ao lado, e ficava a ver quem passava.
Quando lhe apetecia, comprava pipocas e ficava a ver a vida como um filme, com personagens
que mudavam a cada instante.
Anamar
era de poucas palavras. Gostava mais de letras e de livros antigos. Certo dia,
pegou na mala cor-de-rosa de viagem e decidiu partir para Sul, rumo às praias
de água quente que nunca conheceu. Não esqueceu o seu chapéu de abas com flores
de lado, muito menos o fato de banho com flamingos desenhados. Deixou para trás
a casa branca, com portas brancas e poucos quadros nas paredes. Deixou para
trás as aflições, as perfeições e os medos ansiosos. Deixou para trás o mundo
estranho que não lhe correspondia, os amigos que não o eram, a família sempre
fechada e o trabalho que não tinha. Deixou para trás os bancos de jardim e as
pipocas. Deixou para trás o medo de (se) amar. Rumou ao Sul, onde era sempre
Verão e as estrelas brilhavam mais. Apanhou o autocarro e desfrutou da viagem.
Quando chegou, tirou os sapatos e pôs os pés no chão. Sentiu o perfume do mar.
Sorriu. Foi viver."
Adorei :)
ResponderEliminarQuem bom :) Obrigada!
Eliminarque coisa linda *.*
ResponderEliminarObrigada :)
EliminarLindo texto, parabéns :)
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