03 novembro, 2016

Leituras | Se Isto É Uma Mulher


[Fotografia da minha autoria]

Nem sei bem por onde começar. Este livro foi, por um lado, um murro no estômago e, por outro, uma das grandes aprendizagens da minha vida. Se Isto É Uma Mulher retrata aquilo que foi o campo de concentração de Ravensbrück, um campo de concentração só para mulheres administrado por Himmler, esse tirano com corpo de gente tão monstruoso como Hitler. Inicialmente, era um campo-prisão, para onde foram transferidas todas as mulheres que se encontravam na prisão de Lichtenburg. Com o avançar da guerra, tornou-se num campo de trabalho escravo e de morte, albergando mulheres vindas de vários pontos da Alemanha e de outros países como a Polónia, Áustria, França e países de Leste. Ao contrário do que se pensa, não eram só as mulheres judias que eram enviadas para este campo. Neste campo, havia vários 'tipos' de prisioneiras: presas políticas [comunistas, soldados do Exército Vermelho e membros da resistência], judias, as chamadas associais [prostitutas, criminosas e sem-abrigo] e testemunhas de Jeová. Durante a guerra, cerca de 132 000 mulheres, provenientes de mais de 20 países, passaram por Ravensbrück. Mais de metade morreu à fome, espancada ou executada a tiro ou nas câmaras de gás.

Apesar de apresentar uma realidade horrenda, este livro é um hino à força e à coragem das mulheres. Mesmo num sítio tão aterrador, sofrendo espancamentos constantes, sendo obrigadas a passar horas a trabalhar debaixo de neve e tendo direito a comer apenas uma vez por dia, muitas destas mulheres conseguiram resistir. Decidi que, neste meu texto de opinião sobre este livro, iria falar um pouco sobre as mulheres que mais me ficaram na memória, pela sua coragem, determinação, compaixão e altruísmo.

Começo por falar da comunista Olga Benario, que não abdicou nunca dos seus ideais políticos e que, juntamente com as presas políticas comunistas, organizou uma espécie de irmandade que as levou a conseguir sobreviver da melhor forma possível aos horrores do campo de concentração. Olga tornou-se numa espécie de líder querida, justa, amiga. Foi executada na câmara de gás. Em sua homenagem foi construído um memorial/estátua - Tragende - que representa o momento em que Olga pegou numa companheira desfalecida e a carregou sozinha nos braços. É uma imagem simbólica, que representa a união entre as mulheres, mesmo perante tantas dificuldades e miséria. Também Margarete Buber-Neumann me tocou, pelo facto de ter passado grande parte da vida em campos de concentração: primeiro nos campos de trabalhos forçados de Estaline [por ter desertado do partido comunista] e depois em Ravensbrück. Margarete conseguiu sobreviver até ao final da guerra, quando foi libertada. No campo de Ravensbrück fez de tudo para sobreviver e para ajudar as companheiras a sobreviverem. Ao início, foi ostracizada pelas prisioneiras comunistas [por ser uma desertora] mas conseguiu superar todas as provações e manter-se viva até ao fim. Kathe e Rosa, as amigas inseparáveis que se ajudaram e protegeram mutuamente até serem separadas pela morte (Kathe foi executada). Krysia, a polaca que fez parte do grupo de jovens que foi alvo de experiências médicas na enfermaria do campo de concentração [injectavam bactérias juntamente com estilhaços nas pernas das mulheres para lhes provocarem gangrena e tétano, entre outros horrores mais] e que encontrou forma de escrever cartas secretas para o exterior usando a própria urina. Foi Krysia que denunciou as experiências macabras de que eram alvo as mulheres de Ravensbrück. Conseguiu sobreviver até ao final da guerra. Temos também Yevgenia Klemm, soldado do Exército Vermelho, que foi capturada juntamente com outras soldados. Tornou-se na sua líder e na sua força. Foi graças a Yevgenia que muitas das mulheres conseguiram aguentar-se. Foi Yevgenia que impediu que o seu grupo de mulheres fosse violado aquando da libertação do campo. Depois da guerra, foi considerada traidora do partido comunista por ter permitido que as mulheres fossem capturadas [nem tenho palavras para descrever tal estupidez]. Yevgenia aguentou cerca de três anos no campo de concentração, sendo submetida às maiores atrocidades. Conseguiu sobreviver, por ela e pelas suas camaradas. Aguentou tudo. Só não aguentou o facto de ser considerada traidora e desertora. Suicidou-se pouco tempo depois do fim da guerra. Loulou Le Porz e Violette Lecoq, a médica e enfermeira francesas, que se tornaram amigas inseparáveis e que, juntas,  foram os anjos do  Bloco 10 [o bloco da morte, para onde eram enviadas as mulheres gravemente doentes]. Contra todas as faltas de meios, Loulou e Violette, ainda assim, conseguiram salvar muitas mulheres da morte. Chegou uma altura em que as mulheres doentes eram executadas para não darem mais despesas. Loulou e Violette conseguiram evitar muitas das execuções, escondendo as mulheres doentes e tratando delas conforme podiam. Não poderia deixar de falar, também, de Johanna Langfeld, a tirana chefe das guardas que, a certa altura, deixa de conseguir compactuar com tamanhas atrocidades e é despedida. Johanna Langfeld acaba por ter um certo interesse, na medida em que vive numa constante dualidade de sentimentos: por um lado, acredita cegamente nos ideais nazis, por outro, não consegue compactuar com a violência cada vez mais extrema e com as execuções levadas a cabo no campo. Anos mais tarde, num estado debilitado e de quase loucura, vai procurar Margarete Buber-Neumann para lhe pedir desculpa por tudo o que fez no campo. Como estas mulheres há muitas mais. Muitas, muitas mais. Apenas seleccionei algumas para dar o exemplo e para vos deixar com um pequeno vislumbre daquilo que podem encontrar no livro.

As atrocidades relatadas tornam-se cada vez piores a cada página virada. As experiências médicas macabras [como já referi], os bebés que eram mortos à nascença, o kinderzimmer, onde as crianças eram deixadas a morrer à fome, à sede e ao frio,  o bunker, onde as mulheres eram espancadas até à morte, as câmaras de gás e as execuções a tiro, enfim, uma série de factos difíceis de imaginar mas que aconteceram. E é isso que mais me choca, é que não se trata de casos fictícios, isto aconteceu mesmo. Convém ainda dizer que Ravensbrück foi dos últimos campos a ser libertado. Muitos outros o foram primeiro, antes do fim da guerra, por entidades da Cruz Vermelha [que teve um papel vergonhoso, mas isso vão perceber ao lerem o livro]. Ravensbrück não. Muito provavelmente [quase de certeza, digo eu] por ser um campo feminino.

Se Isto É Uma Mulher é mais do que um livro. É história. A nossa história enquanto humanidade. Não é um livro nada fácil. Aliás, foi o livro mais difícil que já li até hoje [e já li muitos]. Muitas vezes tive de parar, pois a minha vontade era vomitar as entranhas, literalmente. Muitas vezes chorei, sentindo uma dor quase insuportável no coração. Muitas vezes me emocionei, de forma positiva, por perceber que, mesmo em condições desumanas, persistia a humanidade entre algumas mulheres, que se ajudavam, defendiam e protegiam. Acho que toda a gente deveria ler este livro. Acho que todas as mulheres deveriam ler este livro. É um pedaço da nossa história enquanto género feminino. É a prova de que, mesmo nos piores momentos, mesmo quando a morte está tão perto, as mulheres têm uma força vinda sabe-se lá de onde, uma resiliência, uma capacidade de sobrevivência e de luta fora do normal. Nunca mais hei-se esquecer as heroínas de Ravensbrück. Nunca mais. Nunca mais.


#

4 comentários:

  1. Parece-me ser extremamente interessante, fiquei muito curiosa para ler. Obrigada pela partilha :)

    ResponderEliminar
  2. Tenho este na prateleira por ler. Entretanto comecei a ler outro dentro do tema, mas sobre os filhos dos nazis. É esse o nome do livro. Muito duro e estranho... como tudo o que envolve o tema...

    Um beijinho,

    http://obiquinidourado.blogspot.pt/

    ResponderEliminar
  3. parece-me muito forte para o meu coraçãozinho!

    ResponderEliminar